domingo, 10 de maio de 2015

Texto para os Diálogos dos Segundos Anos

1
Fomos até o parque, o local de encontros da universidade, nos sentamos debaixo de uma
árvore, e ela me olhou cheia de expectativa.
— Sobre o que vamos conversar? — perguntou.
— Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
— Interessante!
— A Lógica — comecei, limpando a garganta — é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que abordar hoje.
— Interessante! — exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
— Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
— Vamos — animou se ela, piscando os olhos com animação.
Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
— Eu estou de acordo — disse Polly, fervorosamente. — Quer dizer, o exercício é
maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
— Polly — disse eu, com ternura — o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordem de seus médicos para não exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Do contrário está se cometendo um Dicto Simpliciter.

 2
Você compreende?
— Não — confessou ela. — Mas isso é interessante. Quero mais. Quero mais!
— Será melhor se você parar de puxar a manga da minha camisa — disse eu e, quando ela parou, continuei:
— Em seguida, abordaremos uma falácia chamada generalização apressada. Ouça com
atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na universidade sabe falar francês.
— É mesmo? — espantou-se Polly. — Ninguém? Contive a minha impaciência.
— É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
— Você conhece outras falácias? — perguntou ela, animada. — Isto é até melhor do que dançar. — Esforcei me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.
— A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
— Eu conheço uma pessoa exatamente assim — exclamou Polly. — Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
— Polly — interrompi, com energia — é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
— Nunca mais farei isso — prometeu ela, constrangida. — Você está bravo comigo?

                                                     
3
— Não Polly — suspirei. — Não estou bravo.
— Então conte outra falácia.
— Muito bem. Vamos experimentar as premissas contraditórias.
— Vamos — exclamou ela alegremente. Franzi a testa, mas continuei.
— Aí vai um exemplo de premissas contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguirá levantar?
— É claro — respondeu ela imediatamente.
— Mas se ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.
— É mesmo — disse ela, pensativa. — Bem, então eu acho que ele não pode fazer a pedra.
— Mas ele pode fazer tudo — lembrei-lhe. Ela coçou a cabeça linda e vazia.
— Estou confusa — admitiu.
— É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
— Conte outra dessas histórias interessantes — disse Polly, entusiasmada. Consultei o relógio.
— Acho melhor parar por aqui. Levarei você em casa, e lá pensará no que aprendeu hoje.
Sentado sob uma árvore, na noite seguinte, disse:
— Nossa primeira falácia desta noite se chama ad misericordiam. Ela estremeceu de emoção.
— Ouça com atenção — comecei — Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão
pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher e aleijada, as crianças não tem o que comer, não tem o que vestir nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
— Isso é horrível, horrível! — soluçou.
— É horrível — concordei — mas não é um argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre as suas qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendeu?
4
 Dei-lhe um lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos. — A seguir — disse, controlando o tom da voz — discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam
seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
— Pois olhe — disse ela entusiasmada — está e a idéia mais interessante que eu já ouvi há muito tempo.
— Polly — disse eu com impaciência — o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os
advogados e os construtores não estão fazendo teste para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.
— Continuo achando a idéia interessante — disse Polly.
— Santo Cristo! — murmurei, com impaciência.
— A seguir, tentaremos a hipótese contrária ao fato.
— Essa parece ser boa — foi a reação de Polly.
— Preste atenção: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do rádio.
— É mesmo, é mesmo — concordou Polly, sacudindo a cabeça. — Você viu o filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
— Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos — disse eu, friamente — gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.
— Eles deviam colocar o Walter Pidgeon em mais filmes — disse Polly — Eu quase não vejo ele no cinema.
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 Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite para o que podemos suportar.
— A próxima falácia é chamada de envenenar o poço. (Argumento Contra o Homem)
— Que engraçadinho! — deliciouse Polly.
— Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levante e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser’. Agora, Polly, pense bem, o que está errado? Via enrugar a sua testa cremosa, concentrando se. De repente, um brilho de inteligência — o primeiro que vira — surgiu nos seus olhos.
— Não é justo! — disse ela com indignação — Não é justo. O primeiro envenenou o poço antes que os outros pudesse beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você. — Ora — murmurou ela, ruborizando de prazer.
— Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora. — Vamos lá — disse ela, com um abano distraído da mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar trégua. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho duro e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, até que fui recompensado.. — Polly, disse eu, na próxima vez que nos sentamos sob a árvore — hoje não falaremos de
falácias.
— Puxa! — disse ela, desapontada.
— Minha querida — prossegui, favorecendo-a com um sorriso — hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
Generalização apressada — exclamou ela, alegremente.
— Perdão — disse eu.
Generalização apressada — repetiu ela. — Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, contente. Aquela criança adorável aprendera bem as suas lições.


6
— Minha querida — disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão — cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
Falsa Analogia — disse Polly prontamente — eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão contente. A criança adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem demais.
Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.
— Polly, eu te amo. Você é tudo no mundo pra mim, é a lua e a estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão a minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios. Pronto, pensei; está liquidado o assunto.
Ad misericordiam — disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmaleão; era Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadirme.
Era preciso manter a calma a qualquer preço. — Bem, Polly — disse, forçando um sorriso — não há dúvida que você aprendeu bem as falácias.
— Aprendi mesmo — respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
— E quem foi que ensinou a você, Polly?
— Foi você.
— Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida?

7
Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
Hipótese Contrária ao Fato — disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
— Polly — insisti, com voz rouca — você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
Dicto Simpliciter — brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.
Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.
— Você vai ou não vai me namorar?
— Não vou — respondeu ela.
— Por que não? — exigi.
— Porque hoje à tarde eu prometi a Petey Bellows que eu seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!
— Aquele rato! — gritei, chutando a grama. — Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
Envenenar o poço — disse Polly — E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei a minha voz.
— Muito bem — disse — você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?
— Posso sim — declarou Polly — Ele tem uma jaqueta de couro preto.





(Em: As calcinhas corderosa do capitão. Porto Alegre: Ed. Globo, 1973)

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